"SEM A CURIOSIDADE QUE ME MOVE, QUE ME INQUIETA, QUE ME INSERE NA BUSCA, NÃO APRENDO NEM ENSINO." (Paulo Freire)
25 de ago. de 2008
HISTÓRIAS DA VANDA
O PRIMEIRO GRITO DO IPIRANGA
Semana da Pátria. A Diretora queria um desfile impecável dos alunos pela única rua da vila. Minha irmã e eu trabalhávamos na mesma escola, em turnos diferentes. Era a nossa primeira “Independência”... No entanto, era necessário relacionar esse tema cívico às aulas de leitura e produção de texto. Afinal, alfabetizar e desenvolver senso crítico são assuntos afins.
O trabalho com as crianças envolveu desde a pesquisa em enciclopédias até entrevistas com pessoas comuns para saber o que era civismo. Foram produzidos textos, desenhos e um mini-livro sobre civismo. As bandeirinhas do Brasil desenhadas pelas crianças ficaram uma graça! Fizemos até concurso de frases! Porém, faltava realizar algo mais convincente, como um ato público, por exemplo.
Numa das reuniões pedagógicas, relatamos às demais professoras nosso anseio por independência. Depois de muita discussão, decidimos que o problema “transporte” era prioridade. Andávamos em caminhões, pois os ônibus não atendiam ao horário das aulas. Chegávamos atrasadas às segundas-feiras, empoeiradas e desanimadas pelos percalços. Clamaríamos, portanto, uma solução às autoridades. Dessa forma, tramamos confidencialmente dar nosso grito do Ipiranga logo que o nosso D. Pedro se pronunciasse.
O tema do desfile era “A Criação do Mundo – um mundo com Independência”. Separamos os pelotões por subitens, cada um destacando um dia da Criação. As crianças do setor dos animais adoraram a idéia. As meninas dos vegetais capricharam nas alegorias, dando um toque sobre o Meio Ambiente. Adão e Eva sairiam bem vestidos, com roupas feitas de material reciclado, simbolizando a Re-Criação. Até os meninos vestidos de Sol, Lua e Estrelas brilhariam na pequena rua de terra batida. D Pedro I, em seu cavalo, viria ao final, com uma frase de efeito para encerrar o último pelotão e ser a “deixa” para nosso brado heróico e retumbante.
No grande dia, tudo parecia correr bem, ou melhor, desfilar bem. A banda marcial, vinda de uma escola da Sede, apresentava seus primeiros toques. As crianças marchavam sorridentes. A Diretora, encantada, elogiava a todos pelo trabalho.
A comunidade parou para assistir o evento. De todos os cantos, por todos os lados, viam-se rostos de gente sofrida, queimada pelo sol. Trabalhadores da roça, que vinham prestigiar-nos. Mulheres com lenços nas cabeças abrigavam-se sob a sombra das árvores. As autoridades já estavam no palanque: o Prefeito Municipal, a Secretária de Educação do Município, a Chefe do então Subnúcleo de Educação Estadual, alguns vereadores e a Diretora de nossa Escola.
Sol quente de setembro, as coisas começaram a “ferver”. O bode de um dos alunos ficou nervoso com o barulho do bumbo e saiu em disparada no meio da multidão. Corre daqui, corre dali, foi um sufoco até prendê-lo novamente. Um pato voou. Ainda bem que pensaram se tratar de uma evolução. O pior ainda estava por vir: o cavalo de D. Pedro fez uma “parada estratégica” em frente ao palanque e deixou uma “recordação” pelo chão! Alguém gritou um “Viva D. Pedro” para amenizar a situação.
Conforme o combinado, pedimos a palavra. Ouvimos o Hino Nacional. Lemos nosso manifesto e clamamos às autoridades presentes que nos ajudassem a resolver o problema do transporte, a fim de trabalharmos com mais tranqüilidade. Relatamos o cansaço, as horas perdidas nas estradas e todos os riscos que corríamos, enfim.
Um grande silêncio se fez. O Prefeito olhou para os alunos, para a comunidade e para nós, meio surpreso. A Secretária da Educação, então, sorriu e disse que esse 07 de setembro, entraria para a História, pois representava o nosso grito do Ipiranga. Finalmente, o Prefeito convidou-nos para uma reunião em seu gabinete a fim de tratarmos do assunto, que posteriormente foi solucionado. Fomos aplaudidas por todos.
Naquela noite, contemplando as estrelas, fiquei imensamente feliz! Não somente por termos sido ousadas, mas por termos deixado naquelas crianças e naqueles rostos sofridos uma marca, um desejo: lutar por seus direitos. A própria comunidade falava do ocorrido com orgulho.
Ainda hoje, muitos anos depois, quando ouço notícias daquele lugarejo e suas conquistas, orgulho-me de não ter desistido na última hora. Que bom! Esse grito continua ecoando...
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